“Eu sou o Brown mais velho, macaco velho. Estou menos óbvio, menos
personagem e mais natural. Comecei a tomar cuidado. Nunca fui
oportunista, vivo de música, não sou um político que faz música”. Essa é
uma das formas pelas quais o líder e vocalista do Racionais MC’s se define hoje, 25 anos depois de o grupo de rap conseguir
levar sua mensagem não apenas às periferias de todo o Brasil, mas
também a muitos lugares e pessoas que não tinham intimidade com o ritmo.
A mensagem de Brown sempre foi forte e contundente, mas hoje o músico
prepara o lançamento de um álbum solo, no qual o soul e o romantismo
predominam. Isso não significa, nem de longe, que o seu pensamento tenha
se modificado, até porque muito do contexto que propiciou o nascimento
do Racionais ainda está presente na realidade brasileira. “Eu não estava
falando de chacina, de nada disso, estava preparando um disco de música
romântica, aí começou a morrer gente aqui e tive que fazer alguma
coisa.”
O músico se refere à chacina que matou sete pessoas na região do Campo
Limpo, zona sul paulistana, em 5 de janeiro. Entre as vítimas, o músico
DJ Lah, em um primeiro momento tido como autor de um vídeo que
denunciava a execução de um comerciante no mesmo local, feita por
policiais. A informação foi desmentida depois, mas o espectro de que se
tratava de uma vingança paira sobre a população do lugar. E Brown fala
sobre as possíveis consequências para quem viu e sentiu a tragédia de
perto. “Essa ferida não vai cicatrizar, quem mora naquele lugar onde
morreu o Lah não vai esquecer, os moleques vão crescer, mano. Quem viveu
aquilo não vai esquecer.”
Na entrevista a seguir, Mano Brown fala sobre a falta de oportunidades
na periferia, do racismo, de um sistema que oprime, mas também ressalta o
que ele considera ser o nascimento de um novo Brasil, destacando o
papel da nova geração. Assim, ele mesmo tenta se “reinventar” para
seguir na luta que sempre foi dele e de muitas outras pessoas. “Para dar
continuidade ao trabalho, temos que caminhar pra frente, a juventude
precisa de rapidez na informação, não dá pra ficar debatendo a mesma
ideia sempre. É fácil para o Brown ficar nessas ideias, fácil, é até
covarde ficar jogando mais lenha, então fui buscar as outras ideias, que
passam pela raça também, com certeza.”
Fórum – Você esteve em uma reunião do pessoal do rap com o então
candidato a prefeito de São Paulo Fernando Haddad, e ali disse que não
iria falar sobre cultura, mas sim denunciar que os jovens estavam
morrendo na periferia. Recentemente, houve o assassinato do DJ Lah e
mortes violentas de músicos da periferia têm sido muito comuns em São
Paulo, na Baixada Santista, por exemplo. Como definir essa situação?
Mano Brown – Esses moleques cantam o que eles vivem.
Geralmente, quando você chega nas quebradas, tem poucos lugares que são
espaços de lazer, e o lugar onde teve a chacina era um ponto de lazer,
querendo ou não. Um ponto meio marginal, mas tudo que é nosso é
marginal. Era um bar, tinha a sinuca, tinham os amigos, o bate-papo com a
família, tem o fluxo, é o centro da quebrada. O barzinho vende de tudo,
vende pinga, vende leite, vende tudo, e o Lah gostava de ficar por ali,
vários caras gostavam, era o quintal das pessoas.
O que aconteceu ali foi execução, crime de guerra. Tem a guerra e tem os
crimes de guerra. As pessoas não estavam esperando por aquilo ali, não
estavam preparadas pr’aquilo. É o que tem acontecido nesse final do ano
passado, começo de ano, as mortes todas têm o mesmo perfil: moleque
pobre em proximidade de favela. Os caras encontram várias fragilidades
ali, várias formas de chegar, matar e sair rápido, e o governo
simplesmente ignora o que aconteceu. Tem as facilidades. O cara vai lá e
mata sabendo que não vai ser cobrado.
Fórum – Mas você acha que por conta dessas ocorrências tem uma coisa dirigida contra o rap?
Brown – Acho que não, se dissesse isso seria até leviano porque muitas pessoas que morreram não tinham nada a ver com o rap.
Gente comum, motoboy, entregador de pizza, moleque que saiu da Febem e
estava na rua, com uma passagenzinha primária e morreu… E o rap tá na vida da molecada mesmo, tá nos becos, nas esquinas, no bar, na viela, geralmente o moleque que curte rap tá nesses lugares. É uma coisa dirigida, mas é dirigida à raça. Dirigida a uma classe.
Se você for fazer a conta de quantas pessoas morreram no final do ano,
mortes sem explicação, crimes a serem investigados, e somar o tanto de
gente que morreu em Santa Maria… Morreu muito mais aqui. Lá foi comoção
total pela forma que foi, lógico, todo mundo é ser humano, mas veja a
repercussão de um caso e a repercussão de outro caso, quanto tempo
demorou pra mídia acordar pra chacina? Quanto tempo demorou pras pessoas
perceberem a cor dos mortos? Coisa meio que normal, oito pretos mortos,
quatro aqui, três ali… É uma coisa meio cultural, preto, pobre, preso
morto já é uma coisa normal. Ninguém faz contas.
Fórum – E quem está matando nas periferias?
Brown – A polícia. O braço armado, conexões armadas, de direita.
Fórum – Você tem um histórico de estranhamentos com a polícia…
Brown – Houve a época em que soava o gongo, a gente
saía dando porrada pra todo lado, não olhava nem em quem. Outra época, a
gente procurava a polícia pra sair batendo. Hoje em dia, espera pra ver
quem vai vir. Não é só a polícia, são vários poderes. A gente não foca
na polícia, a polícia é um tentáculo do sistema, o mais mal pago. Mas é
armado e chega com autoridade, é um tentáculo perigoso. E tem várias
formas de matar, de matar o preto.
A íntegra da entrevista está na edição 120 da revista Fórum
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